Da poluição paisagística



Era proverbial o enaltecer da paisagem rústica do Entre Douro e Minho.

Enraizada na baixa Idade Média e, sobremodo, estas terras galaico-bracarenses do Tâmega ao Atlântico, gozavam dum consenso que lhes atribuía uma quase imagem edénica pela sua flora luxuriante e verde. E essa sua aparência vegetal provinha de uma ocupação milenar e disseminada que, de cultivos trabalhosos numa orografia de vales ladeados por montes e serpenteada por cursos de água que rematavam na plaina litoral, de alguma maneira ia preservando os solos e mantendo a diversidade da biosfera. Território esse em que, entretanto e por meados do século passado, o impacto do homem ainda podia considerar-se negligenciável e era apenas sensível em zonas urbanas ou num que outro local circunscrito.
Foi esse um património, como tantos outros, que herdamos e por isso, crê-se, digno de respeito e de igual obrigação de preservação. Até porque, dada a sua natureza, muitas das perdas que possam ter acontecido, ou a ocorrer, são irreversíveis.

Salvaguarda que se dever ter, para além do mais, por ele ser um espaço construído, uma paisagem engendrada ao longo de muitos séculos. E provinda de um árduo e constante esforço de comunidades rurais quase sempre excessivas para subsistirem, e poderem permanecer nele, pela sua exploração, mas que, no entanto, com ele mantinham uma relação simbiótica de fraco grau de agressividade. O que decorria, principalmente, por os meios de cultivo serem ainda incipientes e limitativos da capacidade produtiva. Só que, numa posterioridade que se pode dizer algo recente, a progressiva inovação tecnológica e a introdução da agricultura industrializada, alteraram profundamente aquele cenário e o choque disso decorrente foi modificando as antigas paisagens. Quase ao mesmo tempo em que se foi verificando uma cada vez mais desmesurada destruição da cobertura vegetal, de solo, por ocupações não agrícolas das mais diversas índoles.

Deste evidenciado relato e sua hodierna transformação, o que logo se pode inferir é que esta última advém de duas modalidades de intervenções: a dita agrícola e as que não o são. Destas, a primeira e por normalmente ter uma menor intensidade visual desfigurante, vamos pura e simplesmente ignorá-la. As outras e é bom que se acentue desde já a sua sujeição a um crescimento exponencial a partir do antropoceno (bem mais recente e inicialmente fraco por cá), merecem atenção.

Antes, porém, convém assegurar que a paisagem é um bom barómetro para aferir da qualidade do ordenamento do território; para além de permitir visualizar eventuais atentados à biosfera, à crusta e, mesmo, de focos de poluição. E importa igualmente salientar que as acima referidas intervenções podem ser públicas e de inerente interesse colectivo, ou privadas e de proveito essencialmente individual. Distinção esta que permite diferenciar, e optar, quando a paisagem existente tem de ser sacrificada ou não o deve ser; sempre, porém, com a obrigatória integração dessa intervenção na anterior, ou para se a melhorar.

Adiantadas estas considerações, talvez se imponha fixar, ainda que latu sensu, o que se entende por paisagem. Fica sabido, assim, que estamos a referir-nos a um qualquer panorama terrestre visualizado pelo homem. Lembrando, sempre, que nos seus calculados 4,54 mil milhões de anos (4,54x109) de idade, a Terra, como qualquer outro processo material, desenvolveu-se numa constante dinâmica evolutiva. Ou seja, situando-nos num mesmo preciso local ao longo de todo esse tempo, o aspecto com que este se nos foi apresentando teve e mostrou os mais díspares cenários: dos gazes e energias iniciais à formação da crusta (litosfera e hidrosfera), à já biosfera, ao desenrolar desta, às diversas modificações que a crusta foi atravessando (das tectónicas às glaciações; a última destas já coincidente com o homo sapiens), para atingirmos o aparente estado estático em que nos revemos actualmente (o tempo, no processo terrestre, tem um suceder muitíssimo divergente de o do processo social humano, por supostamente este último ser, comparativamente àquele, velocíssimo). O que nos leva a perceber que, no passado, o impacto humano no curso da natureza não foi factor determinante para a alteração paisagística. No entanto e muito derivado do fortíssimo aumento demográfico, de densificações zonais e das cada vez maiores exigências de consumo da vida moderna, o que se tem vindo a impor é uma explosão de ocupações e intervenções sobre a solo. Mormente a partir do já mencionado antropoceno. E com efeitos bem perceptíveis.

Do dito, interessa reter que a paisagem evolui, seja por causas não humanas, seja e sobretudo na contemporaneidade, também por acção directa ou indirecta do homem. Sendo que estas últimas são: ou imediatamente notadas, as directas ou tendem a sentir-se, as indirectas (como as alterações climáticas que por aí estão).

Do mesmo modo tem de aceitar-se o processo humano como uma sequência consequente da evolução da biosfera que, ao presente, nela comporta cerca de 8 mil milhões (8x109) de pessoas neste planeta cada vez mais finito. E depois inseri-las em sociedades maioritariamente consumistas, com necessidades (???) e capacidades científicas, tecnológicas e produtivas que podem levar à rápida exaustão de algumas matérias primas não, ou insuficientemente, renováveis (pegada ecológica). Num simultâneo com poluições, destruições de ecossistemas e respectiva redução de biodiversidade.

Por o exposto, conclui-se que a paisagem é, portanto, mutável; seja por força do processo planetário, seja por acção humana e que, neste caso, as transformações podem ser rapidamente visíveis. Assim sendo, a alteração da paisagem é, em si, um decurso normal. Só que há alterações e alterações. E há as que se compreendem, e têm de aceitar e aquelas que não se compreendem e, por isso, seriam de recusar e, eventualmente, poluem e destroem. E daí o sermos levados à análise das causas dessas intervenções. Sabido que, nas naturais, elas são imperativas e sempre sequências consequentes (momentos contíguos e continuados na dinâmica do entre o que era e o que se lhe sucede). Nas humanas, tendo também as suas causas, não apresentam aquele carácter de imperiosidade e, por isso, podem ser questionadas. Isto porque a lógica da natureza é, sempre, sequencialmente consequente e a humana não. E precisamente por o ser, a evolução natural traduz-se em, e produz, um novo equilíbrio; um resultado harmonioso de presumível agradabilidade estética. A humana nem sempre, mesmo quando se pretende justificada e integrada.

Em qualquer dos casos, qualquer dos processos, o terrestre ou os humanos, são processos evolutivos materiais e todos, portanto, reais. Por conseguinte e como os segundos dependem de decisões volitivas conjunturais, os fundamentos que as motivam podem não encaixar no correcto desenvolvimento perspectivado da Terra e, assim, colidirem com a sua evolução ordinária. Ora quando tal se verifica quem sofre é esta. E, então, deparamo-nos com uma particular forma de poluição visual: a paisagística, como efeito de a devastação que lhe está subjacente. E aí a paisagem aparece como um valor autónomo. Ou não somos o Planeta Verde, cujas características observáveis nessa sua imagem nos permitiram, ainda permitem e queremos que continuem a permitir num futuro de milhares de anos (na prossecução dos cerca de 300.000 (3x105) que já levamos)?
Quase a terminar, cabe ainda recordar a lenda dos grãos de arroz no tabuleiro de xadrez. Narra ela que um dignatário indiano pretendeu recompensar o homem que o introduzira nesse jogo e prometeu-lhe o que ele lhe pedisse. Ora este pediu-lhe um grão de arroz e depois, sempre a duplicar, em cada uma das seguintes 63 casas do tabuleiro. O que parecia uma bagatela logo demostrou não o ser, porque não havia arroz para cumprir tão custosa promessa.
Voltando à paisagem. Às intervenções não agrícolas sobre o solo ou na crusta. E se as grandes são, em algumas partes, sujeitas a avaliação da sua perturbação, as micro e médias, escapam a esse juízo e, no entanto, correspondem aos grãos de arroz progressivos no tabuleiro da Terra. O que faz com que, no seu incomensurável volume e frequência, danifiquem a homogeneidade do processo planetário como um todo. E, pior, denunciem a aceleração de condições que, parece, estão a por em causa a própria viabilidade futura da biosfera, ou, pelo menos, estão a alterar os parâmetros duma sua conveniente evolução. O que facilmente se patenteia pela observação da paisagem que é, como se pode dizer, a pele do corpo da Terra. E vista do espaço, de avião, do alto da Penha ou mais chegado ao chão, notam-se-lhe chagas, aspectos macilentos duma patologia neoplásica ou de doenças, que denotam que esse corpo está a precisar de tratamento.
Querendo a paisagem com uma categoria, atente-se, pois, nela e dê-se-lhe a atenção que merece.

Fundevila,
29 de Março de 2024


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