“ ... Mas amarás o próximo como a ti mesmo; ...” (Lv. 19.18)

Nós, os deste Mare Nostrum, os que dele proviemos e desde que mamamos o seu leite cultural, crescemos sobre a influência deste princípio

milenar nas diversas interpretações que os tempos e as sociedades lhe foram conferindo. E se posteriormente os evangelhos o confirmaram, não é de menos citar Paulo na sua Epístola aos Romanos (13. 9) aonde, inequivocamente, afirma que “ Pois isto: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e se há qualquer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.

Princípio ético religioso fundamental para o relacionamento humano destas nossas paragens que, com assento em diversas correntes filosóficas da antiguidade clássica, foi amplamente tratado por Agostinho, bispo de Hipona (Tomás de Aquino aborda essencialmente o amor paixão como sentimento individual e, na senda de Aristóteles, já o trasveste, na categoria de justiça, como uma ambicionável igualdade), passando na Idade Média por Francisco de Assis e que vinga, reforçado, nos nossos dias no discurso do actual Papa.

Religião que neste remate de continente (que, pondo-nos em bicos de pés, apelidamos impropriamente de continente) foi formatando a procissão das gerações segundo as vicissitudes de cada época. Mas que o princípio estava lá perante Jeová, lá isso estava, materializado pelo menos no fim comum e sem distinções, ou em que estas não coincidiam com posicionamentos sociais (quem não se lembra do nosso Mestre Gil e do Auto da Barca do Inferno?). Mas passemos à frente que não é este o tema que aqui se pretende visar, não obstante e sobretudo para tempos mais recuados, a primordial importância que a predicação cristã induzia nas gentes destas nossas paragens europeias. Isto não obstante o seu desvirtuamento prático com diferenciações estruturais e, igualmente, no bom acatamento de todas as desigualdades ocorrentes, por mais inaceitáveis que elas sejam aos nossos olhos, mas que eram tidas, então, como conformes ao bom trato social; ao jeito do bem prega frei Tomás, olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz.

Feito pois este sucinto périplo espiritual, viremo-nos para o temporal; abstraindo do filosófico face à sua interminável dimensão.
Aí, nas estruturas organizativas sociais e para momentos mais ou menos coincidentes com a viagem temporal do antepenúltimo parágrafo, o que se nos oferece saber é de um mundo de profundas desigualdades (com possíveis excepções que a regra sempre admite, como pode ser o caso, entre os judeus, das comunidades essénias ou o mais mitificado da pretensa democracia ateniense). Mas as disparidades, com a constante da escravatura, atravessaram toda a antiguidade clássica, subsistiram durante toda a época do Império Romano e entraram pela Idade Média dentro, através do sistema feudal (num à parte chamativo para o presente, lembre-se o iníquo direito de pernada). Sistema feudal que, principalmente a partir do século XVII (recordem-se as anteriores jacqueries e aqui ao lado, na Galiza, os ermandinos), começou a fazer ouvir vozes contestatárias, cada vez mais frequentes e sucessivamente avolumadas, que questionavam as disparidades e nos trouxeram até à independência, da Inglaterra, das 13 colónias da América do Norte, à sua Declaração (onde está exarado, preto no branco, que todos os homens são criados iguais; pasme-se com o que hoje se conhece dessa lá prescrita equiparação) e, anos depois, a Revolução Francesa, como seu slogan de Liberté, Igualité e Fraternité (esta hoje traduzida por solidariedade), bem como a sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Triunfada esta sublevação burguesa, pode-se dizer que o sistema feudal recebeu a choupada que o foi derribando por essa Europa fora, numa mudança que, paulatinamente, foi implantando uma nova ditadura de classe, a de uma emergente burguesia cada vez mais concentradora dos fios que movimentam as marionetas do caricaturado Zé Povinho (ai Rafael Bordalo como continuas presente!). E nela persistimos com maior ou menor visibilidade, pois são os valores dessa classe quem orienta, decide e dirige o que vai de mundo. Ela e o seu cortejo de serventuários que, abocanhando aqui e ali, tem despertado um cada vez mais incomensurável coro de descontentes que, ou se tem organizado por sectores de singularidades, ou, como os cegos de Brueghel el viejo, vão, sendo incapazes, caminhando para o acidente ao sabor do canto de sereias.

Assim, não será de menos, neste momento e texto, sempre, trazer à colação a cada vez menos imprescindível Declaração Universal dos Diretos do Homem (aprovada em Assembleia Geral da ONU de Paris, de 10 de Dezembro de 1948), tão incumprida, obliterada e que, no entanto, é a expressão mais actual e pormenorizada do acima preceito judaico que é usado como titulo deste escrito. E é de tal importância no hoje que deveria ser usada como leitura desde os primeiros vagidos educativos, para que, como escreveu a Unesco por ocasião da Exposição dos Direitos do Homem de Paris, em 1949, não se corra o risco efectivo de ela “... permanecer letra morta, se os povos, por ignorância ou por cepticismo, não lhe concederem por eles mesmos, a importância que é do seu próprio interesse que ela esteja revestida. Seria desastroso que, por falta de confiança no valor das promessas que ela lhes faz, eles negligenciem de as aproveitarem e não queiram a sua aplicação. Os povos devem ter em atenção que os direitos do homem não são um dom gratuito da história. Eles foram alcançados no fim de lutas longas e difíceis. Essas lutas, como os esforços e os sacrifícios que custaram, eram inevitáveis, pois, quando se desce da teoria à prática, o respeito dos direitos de cada um não se consegue sem ferir interesses e acabar com privilégios”.

Retomando aquele coro dos descontentes, dos duros combates por diversas igualdades face a reais desigualdades, esta oração passa a ater-se a uma particularidade do tempo presente: o da pandemia que nos assola. E nela à consciência tão pedida pelos poderes públicos de que a doença respeita a todos, por o que a responsabilidade da eliminação do contágio comunitário deve ser assumido individual e, simultaneamente, colectivamente, numa espécie de repescagem do unus pro omnibus, omnes pro uno (um por todos e todos por um), lema popularizado por Alexandre Dumas nos Três Mosqueteiros.

Que se retenha, portanto, a ideia dessa responsabilidade individual.
Ora nesta altura em que tanto se fala de mutação, de tempo de diferença, de qualquer coisa nova que temos pela frente e da multidão de vozes que o anunciam sem ainda lhe darem forma precisa, não será de menos apercebermo-nos do alcance da opinião de alguém que está numa situação privilegiada para se inteirar do que decorre planeta fora e que, certamente, medindo as palavras, escreveu que O nosso mundo está à beira da rutura (António Guterres, Público, 19.07). E ruptura é mesmo ruptura, ou seja uma quebra no seguimento continuado do processo.

Tente, pois, apreender-se o que estamos a viver. E compreenda-se que a rota para um mundo mais fraterno e de iguais (de uma Terra verdadeiramente saudável em todos os seus aspectos, da nossa espécie inclusive), depende de cada um de nós, de todos, desde o mais insignificante gesto que possamos fazer até ao mais relevante. E, por isso, aproveitando os constrangimentos da hora, do relativo confinamento a que as férias vão estar sujeitas, equacione-se responsavelmente o caminho que se pretende prosseguir para uma cada vez maior desejável igualdade.

Fundevila, 29 de Julho de 2020


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