Malandro

Os malandros desapareceram do mapa. Já não lemos notícias sobre alguém que vendeu a um absurdo incauto a Torre Eiffel ou o Castelo

de Guimarães, ou sobre alguém que mantém, com apreciável destreza, duas famílias ao mesmo tempo sem que uma, ou outra, saiba da dupla vida do malandro. Já não se comenta sobre o fulano que vendeu bisnagas para a lombalgia a vacas anémicas e que, milagrosamente, as curou. O malandro foi-se na enxurrada da falta de humor que caracteriza os tristes dias que vamos vivendo.

Confunde-se muitas vezes o malandro com o vigarista. Nada de mais errado e profundamente injusto ... para o malandro. O vigarista é egoísta, vicioso e intrinsecamente mau. Não quer saber das famílias que desgraça, do país que corrompe, das pessoas que usa, da imagem que de si dá quando lhe descobrem a careca, o malandro não. O malandro é cioso da sua reputação, o vigarista, pelo contrário, troca a reputação por dinheiro. O malandro é profundamente humano, pois a malandrice é uma forma de olhar a vida com desprendimento e graça.
O problema dos dias que hoje é a notória ausência colorida dos malandros, tão bem emoldurados no tempo pelos filmes italianos de Dino Risi, e o excesso de vigaristas frios, calculistas e profundamente desinteressantes. O vigarista vende papel prometendo fortunas ou congemina complicados circuitos entre empresas offshore, o malandro vende a Torre dos Clérigos, vende sonhos de grandeza à estupidez endinheirada, e gasta-o todo logo a seguir com os amigos e amigas. Não faz o dinheiro circular offshore, mas lança-o offshore. O malandro nunca enriquece, todo o dinheiro que ganha nos seus brilhantes esquemas é lançado logo na economia local de forma excessiva. O malandro não deixa que a mulher que traiu sinta que ele já não a ama. O malandro ama-a e repete-o à exaustão, só que, com um coração tão grande quanto o dele, ama outras também. Infelizmente acrescenta, mentindo com toda a sinceridade.

Morreu um malandro do futebol. O maior de todos: Maradona. Podia-se ter contentado com o génio futebolístico que lhe calhou em graça, mas isso nunca foi suficiente para ele. O génio é asséptico. A malandragem é colorida. E Maradona juntou as duas características, daí ele ser tão especial quanto foi e nos faça, hoje, lembrar dele da forma carinhosa como nos lembramos. Ele exagerava como bom malandro que era. Ele fazia aquela finta a mais que, aparentemente, iria comprometer o golo, mas não comprometia, pois, o malandro era também um génio. Ele quis ganhar aos ingleses e ganhou, com talento no segundo golo, mas, sobretudo, com a malandragem do primeiro, provavelmente o golo que ele recordaria com mais gozo. Com a mão encostadinha à cabeça, como quem não quer a coisa mesmo querendo. O Shilton era maior do que ele, que poderia Maradona fazer senão aquilo? O guarda-redes inglês nunca perdoou o facto de Maradona não ter pedido desculpa. Como poderia? Aquilo era mesmo para ser assim, era mesmo para magoar a mais empedernida sobranceria inglesa, com um truque: inapelável e eficaz. Nesse glorioso ano de 1986 Maradona pertencia já à linda cidade de Nápoles, resgatando toda aquela malandragem à angústia da irrelevância. E resgatou.

Olho o mundo hoje com um pessimismo que não me é muito natural.
E se assim me sinto é sobretudo pela inacreditável ausência de humor dos dias de hoje. Tudo hoje é ou preto ou branco, ou por mim ou contra mim, ou da Vila de Cima ou da Vila de Baixo, e a vida não é nada assim, ou é? Tudo se vem transformado assustadoramente, dia a dia, numa cara ou coroa, em que ou se está ou do lado certo e ou se está do lado errado, sem remissão.
Estamos entregues, por estes dias cinzentos, a tribos evangélicas que defendem a sua verdade em oposição feroz à verdade alheia. Não me lembro de um cenário mundial e nacional tão barricado quanto o de hoje. Que interesse têm os Mamadou ou os Venturas, o congresso do Tio Jerónimo, o negacionismo da Covid ou o apontar de dedo aos libertários? Para mim muito pouco, quando o país vai desabando em câmara lenta, aos olhos de todos, económica e socialmente. Vou tentando resistir a esta loucura dicotómica à espera que emirjam malandros onde sobram burgessos, contra o acantonamento doutrinário da opinião instantânea e assustadoramente definitiva.

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