Isto está bom é para as lampreias

Por mais absurda que seja, por vezes, a nossa vida, nada como olhar para o reino animal para sentir alguma tranquilidade na existência.

Mesmo encarcerados neste conjunto de regras e impossibilidades - à espera que a coisa passe e nunca mais passa – temos uma enorme paleta de sentimentos (mesmo os maus) e possibilidades que, por exemplo, uma lampreia não tem.
Ao nascer a lampreia fica enterrada no leito de um rio durante um tempo infinito. Pode chegar a uma década! A grande parte da vida daquele peixe ciclóstomo é passada na escuridão até que cresce e, finalmente, vai para o mar. Para se divertir? Nem por isso, para se tornar uma espécie de vampiro do oceano, sugando o sangue aos peixes mais desprevenidos. Depois da maldade feita regressa ao rio para se reproduzir e morrer. De forma natural ou, mais provavelmente, numa bordalesa. No nosso Rio Minho ela é melhor pois perdeu muita da sua gordura ao enfrentar as suas águas correntosas e frias desse bravo rio.

A pandemia protegeu-as, em Março do ano passado, do seu esperado destino culinário. Este ano protegeu-as o tempo todo: Janeiro, Fevereiro e previsivelmente Março vão ser meses tranquilos para este animal. Com os restaurantes fechados e amargurados, sofrem os donos e trabalhadores, sofrem, mesmo assim menos, os comilões e as lampreias devem estar perplexas por tanta liberdade.
Estão assim, ao contrário de nós, tranquilas as lampreias. E os cães também. Apesar de esgotados pelos passeios sucessivos.

Nós, apesar da liberdade e diversidade da nossa própria espécie, continuámos a subir o rio para desovar e a viagem está a ser repetitiva e impossível. Nunca mais saímos do sítio. Pelo contrário. A corrente recoloca-nos, por vezes, mais atrás.
Vários povos deram um passo em frente sempre que as circunstâncias foram particularmente difíceis. Nada como a desgraça coletiva para mudar de rumo e ver mais claramente o que interessa. Nós não.
A nossa idiossincrasia é igualmente previsível e longa. A cada estado de emergência repete-se o cenário estafado. O partido do governo despreza o partido da oposição que lhe permite sucessivamente adoptar as medidas de emergência e cai nos braços daqueles que não o querem. Absurdo. E de estado de emergência em estado de emergência mudam os números de infetados e mortos, mas nada, efetivamente, muda. Assistimos nos meses antes do Natal ao desleixo com que se tratou aqueles que contactaram com os infetados. Isto vai correr bem somos os melhores do mundo, espera-se por debaixo do arco-íris, e a coisa não corre bem e – que surpresa - somos os piores do mundo. E aperta-se mais pois o povo é relapso e dá-se finalmente ouvidos aos que diziam, há meses, que era preciso testar mais. Anuncia-se na televisão isso mesmo e o que acontece: o número de testes diminui alegremente pois somos os melhores e a coisa vai (afinal) correr bem. Deveríamos, suponho eu, estar a testar em massa para identificar e isolar as cadeias de transmissão. E não estamos. Os números descem à custa de uma economia que sofre à espera de uma bazuca miraculosa apontada ao Estado que deixe tudo como estava e isso, naturalmente, não vai acontecer. No entanto a overdose de anúncios continua: mais vale uma propaganda na mão que duas medidas a voar. E chega, depois de enésimos técnicos que fizeram toda a sua carreira à sombra da secretaria de estado, um vice-almirante a dizer coisas óbvias, sensatas e confiáveis. E até parece mentira. Acho António Costa uma pessoa corajosa e hábil. O problema, a meu ver, é que lhe dá mais gozo a habilidade do que a coragem. E nele essas duas características não se aliam, digladiam-se e, para mal dos nossos pecados, ganha sempre a habilidade.
Mas para a propaganda resultar é preciso bagatelas para entreter. E elas não faltam: seja o Marcelino ou o lóbi gay ou um rapper parvalhão incensado a mártir à custa de um sistema judicial com muito pouco bom senso. Ou um belíssimo Padrão dos Descobrimentos olhando a água com uma urgência de futuro.

Enquanto isso nada se move. Gerações de jovens veem, novamente, o seu futuro adiado, a sua possibilidade postergada de nos ajudarem a construir um amanhã mais fresco e diferente para este país, pois continuam a ser (eles sim) os mais vulneráveis. O que nos permite ter futuro é, efetivamente, aquilo que esquecemos agora. E é fácil esquecê-los, não são uma corporação, nem detêm o poder. E são poucos. O que infelizmente também “ajuda”. Sempre que vejo uma grávida dá-me vontade de a abraçar... e lhe agradecer a missão.
A situação continua séria e grave e o futuro, na realidade, é já ali. O futuro não é de esquerda nem de direita é uma seta, reta e inevitável, que precisa de ser atirada agora ... com precisão! E não apenas só porque sim.

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