O vírus chinês



A comunicação social cobriu, e continua a cobrir, a pandemia do Covid-19 de uma forma genericamente honesta.

Em Portugal e, pelo que me parece, fora do nosso retângulo. É evidente que as excitações tontas do primeiro infetado, a mensagem inspiradora, ou a filmagem à socapa dos velhinhos a jogarem à bisca lambida eram desnecessárias. Mas ainda assim. O Expresso tem na sua edição on-line, que reproduz amiúde nas edições em papel, uma infografia bestial. Simples, apelativa, impecável. Foi através desses gráficos e legendas que me apercebi da quantidade e ferocidade das pandemias que nos atinge desde o ano zero.

A peste Antonina (165-180) com 5 milhões de mortos afetou o Império Romano do Ocidente, a praga de Justiniano (541-750) arrasou o Império Romano do Oriente com dezenas de milhões de mortes (50 na sua versão mais larga), a peste bubónica/negra (1343-1353) a mais feroz de todas, com 200 milhões de mortos, disseminada através de bactérias originárias na Ásia Central e que entraram na Europa pela rota da seda modificando o panorama demográfico e político do nosso continente, a varíola (com o pico em 1520 e só oficialmente erradicada em 1980) responsável por mais de 50 milhões de mortos. Febre amarela, gripe espanhola, gripe russa, gripe asiática, gripe de Hong Kong. Todas elas com nomes reconhecíveis: de pessoas, de países ou regiões, de sinais, de consequências. Muitos deles injustos, como a gripe espanhola, mas ainda assim entendíveis e visuais.

No entretanto os nomes das pandemias foram ficando neutros e vazios como siglas: SARS, MERS, Gripe A e, agora, Covid-19. Ganhou-se no politicamente correto e perdeu-se,
violentamente, na semântica. Os nomes das pandemias assemelham-se hoje aos nomes dos robôs de filmes de ficção científica. Uma pena.
Há quem, no entanto, faça finca-pé na colorida e significativa expressão: vírus chinês. E é. Ficaria inclusivamente bem como castigo ao palerma que decidiu comer pangolim na brasa e ao escol de dirigentes, transparentes como o granito, que aperfeiçoam o tentacular capitalismo de estado. E que tratam a importante informação sobre o vírus de forma dúbia, secreta e repressiva, como se de um ataque ao partido Comunista Chinês tudo se tratasse. Vírus chinês generaliza demais, é certo, mas alivia e, acima de tudo, especifica.

Sem a gravidade de uma pandemia a Doença das Vacas Loucas (apenas uma epidemia) é, claramente, outro bom nome. A semântica não chora aqui. Mesmo a versão politicamente correta tem um nome decente: encefalopatia espongiforme bovina. E foi há pouco. Apesar de, dizem, a origem do prião maligno que lhe deu origem estar nas ovelhas. Mas a vaca ficou na fotografia e foi isso que interessou: vaca louca!

Na verdade, vimos assistindo, impotentes, à higienização da desgraça. Pelo menos ao nível dos nomes que a desgraça circunstancialmente adota.
Como se isso já não bastasse perdemo-nos por estes dias no autoelogio. Já chega deste processo de judaização do povo português. O povo escolhido é sempre uma treta. E não somos especiais. Somos, genericamente, uns gajos porreiros, mas não mais do que isso. A não ser que Deus se tenha também higienizado como o nome das pandemias. E se há uns milénios atrás Ele “escolheu” os judeus pela vida desgraçada que levavam, dando-lhes, amiúde, mais sofrimento, chegou recentemente às praias portugue sas e exclamou: eis ali o meu povo, os portugueses! Será?
Convém ainda assim estar atento. Ouço relatos de funcionários de funerárias que impõem restrições a um abraço entre irmãos no funeral da mãe. Isso é inconcebível e nega a nossa condição de humanos, sejamos nós portugueses, iranianos, americanos, israelitas ou chineses. Sentimos da mesma forma, temos uma sensibilidade comum, quer vivamos em democracia ou em regimes repressivos, quer atravessemos o deserto em busca da terra prometida ou apenas o areal para aliviar o joanete.
No entanto fiquemos vigilantes pois há gente a abusar, secretamente, da mioleira de vaca. Para esses: todo o nosso humano desprezo e ... humana insubmissão.


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