Muito se engana quem cuida

DECENNIIS, quando se aterrava nos Gerais para se pegar de caras, ou ainda que tão só de cernelha, o curso de Direito, logo se era confrontado com duas

cadeiras de suporte para tudo o que se lhes iria prosseguir: as Noções Fundamentais de Direito Civil (preleccionadas pelo brilhante jurisconsulto Professor Doutor Fernando Andrade Pires de Lima) e a História do Direito Romano.

Com elas e desde esse martelar inicial sempre tocado no mesmo tom até ao rasgar do traje académico, se ficava a compreender duas coisas: a primeira, que o Direito era uma imposição de homens sobre os homens, indo do dever ser à positividade de cada norma vigente; e a segunda, milenar, que ele e muitas vezes em apenas umas quantas actualizações que o tempo ditava (de estrutura ou mais frequentemente de ajuste de pormenor ou inovação), acompanhou sempre a trajectória da realidade das respectivas sociedades europeias, moldando-as no seu quotidiano. E com este aceder à relatividade temporal da disciplina, cedo se atinava no jogo da jurisprudência dos conceitos e na dos interesses para uma formação que, mais do que o saber das normas concretas, impendia sobre toda a construção que permitia discernir entre o espírito do preceituado (pensamento legislativo) e o espartilho do texto (letra da lei). E que para lá se chegar, da filosofia do direito à plenitude lógica do ordenamento em apreço, havia que interiorizar toda uma quantidade de conheceres que possibilitavam, e só eles capacitavam para, uma leitura condicente dessa vontade legislativa, situando-a no tempo da sua elaboração e, posteriormente, no da sua aplicação; e, ainda e no mesmo diapasão, proporcionando a aplicação analógica e o preenchimento de lacunas.

Assim e ao ter-se a lei como geral a abstracta, isso permitia que aquele seu espírito fosse evoluindo consoante, e em paralelo com, a vivência da respectiva sociedade; possibilitando, portanto, diversas leituras que, apenas e tão-somente, tinham como espartilho intransponível a dita sua letra. Daí e como o Direito não é um saber exacto, nem estático, as possíveis várias interpretações dum mesmo artigo da lei e as seguintes correntes doutrinais ou jurisprudenciais, iam-na adequando ao dia a dia e conferiam a desejável certeza e segurança à vida social, por uma sua capacidade de acertada permanência.

Ora esse carácter geral e abstracto da lei colide com a crescente tentação de a alargar à regulamentação (listagem de procedimentos); actividade anteriormente remetida para legislações menores e subordinadas (portarias e não só). Por isso e talvez porque a celeridade apressada dos nossos dias, o que preside a um presente que não admite delongas, não faculta o cuidado em bem estudar e afinar as soluções legislativas (que deviam assentar no estudo criterioso do direito comparado e, sobretudo, na calma ponderação dos prós e contras do a estatuir; inclusivamente e quando viável, na sua testagem), as leis têm vindo a perder o rigor que era seu apanágio e adensam-se, engordam em demasia com o fito de cingirem o maior número provável de detalhes. Assim sendo e também por ser de bom tom (na senda do common law e na do pragmatismo made in USA) exibir, defender e sujeitar-se à supremacia dessas modas, as leis cada vez mais vêm introduzindo parcelas de pura regulamentação, menosprezando aquele seu princípio basilar de generalidade e abstracção. Com a consequência de reduzirem e incidirem a leitura sobre um rol de medidas detalhadas ao quase pormenor que, portanto, castram a autonomia interpretativa e ao mesmo tempo, na evidente impossibilidade de preverem todas as situações ou particularidades destas, restringem a qualidade legislativa e dão azo a aplicações que muitas vezes raiam o absurdo, afastando-se inclusivamente do interesse tutelado. Ao mesmo tempo que perdem perenidade, se tornam extensíssimas e se multiplicam diarreicamente (é ver a dimensão métrica da 1ª Série do DR anual). E esta última afirmação não resulta das especialidades em que o Direito se tem introduzido. Não! É antes o resultado dessa fúria regulamentadora. Pecha que, no entanto, não é só nossa e a UE é um bom exemplo disso.

Circunstâncias atrás descritas ademais ampliadas por populistas e anacrónicas posições de via única promovidas à exaustão pela comunicação social, que fazem jus a uma autenticidade interpretativa que de modo algum têm; além de mais porque a hermenêutica, no Direito como em todas as outras disciplinas, pressupõe uma formação especializada que, quanto mais ramificado ele for, mais própria carece de ser.
Dito isto, pode perguntar-se o porquê deste já cumprido relambório?

Muito simples! Porque está a começar a época dos incêndios florestais e multiplicam-se os avisos, as orientações para a gestão e toda a parafernália de considerações sobre a imputação de responsabilidades que possam advir para prevaricadores desse cíclico flagelo.
Sendo ele calamidade antiga, para não dizer de sempre, e algo dependente de condições naturais, tenhamo-nos apenas no DL 126/2006, de 28 de Junho (republicado pela Lei 76/2017, de 17 de Agosto) e vá lá, para ajudar na compreensão, na disposição transitória da Lei 114/2017, de 29 de Dezembro. Da versão inicial à em vigor para defesa da florestas contra incêndios (SDFCI), como intuito que resulta do objecto denunciado no seu artigo 1.º, está o sistema nele estabelecido para se atingir esse fim (o da defesa da floresta), que não para quaisquer outros e ainda que correlacionados.

Será entretanto de, ab initio e como reporte para aquilo por aonde atrás se deambulou, relembrar que o excessivo aprofundamento detalhado desse quase código assenta numa unicidade de homogeneidade territorial do País, e da floresta, que e como se sabe, e é evidente, aquele e esta não comportam. Assim e sem acolher as diversidades geológicas, climáticas (pluviosidade, humidade, insolação, etc., etc.), da flora e das lavouras, uniformiza as regras como se elas fossem de idêntica e praticável aplicação; descorando diferenças verificadas e ignorando realidades sabidas por todos os lavradores experientes. Sem ir mais longe e compreendendo na lógica utilizada a necessidade da definição, basta atentar no aí formulado conceito de floresta: “... o terreno, com a área maior ou igual a 0,5 hectares (cerca de meio campo de futebol para jogos internacionais) e largura maior ou igual a 20 metros, onde se verifica a presença de árvores florestais que tenham atingido, ou com capacidade para atingir, um altura superior a 5 metros e grau de coberto maior ou igual a 10%: ...”. Definição bem distante do significado corrente da palavra e que aliada à da definição de “rede de faixas de gestão de combustíveis”, as estas se as afirma “ ... com o objectivo principal de criar oportunidades para o combate em caso de incêndio rural e de reduzir a susceptibilidade ao fogo.” Nesse sentido e no reconhecimento de desigualdades, a lei subdividiu as redes de faixas de gestão de combustíveis em três grau, as primárias, as secundárias e as terciárias; competindo a estas últimas apenas a “Função de isolamento de potenciais focos de ignição de incêndios.”

Não assim as redes secundárias, que também têm a “Função de redução dos efeitos de passagem de incêndios, protegendo de forma passiva vias de comunicação, infraestruturas e equipamentos sociais, zonas edificadas e povoamentos florestais de valor especial.”. E só a estas, só para elas preceitua o tão invocado artigo 15.º. Di-lo o seu título, o seu número 1. ao atribuir ao Município a sua definição no Plano Municipal de Defesa da Floresta contra Incêndios (PMDFCI) e se dúvidas ainda houvessem para iletrados, a remessa no 2.º para um anexo cujo título reza “Critérios para gestão de combustíveis no âmbito das redes secundárias de gestão de combustíveis” deveria feri-los de um mínimo de bom senso. Ou seja, esses critérios são próprios e exclusivos das redes secundárias e só delas.

É certo que o País ainda vive sobre o trauma da dramática tragédia de, obliterando os restantes dez concelhos, o vulgarmente referido de Pedrogão Grande; e de um medo da sua repetição provocado interessadamente. A este propósito, porém, nunca é demais deixar de recordar, e frisar, o relatório da Comissão Técnica Independente nomeada pela Assembleia da República que, apontando os três níveis de problemáticas susceptíveis de explicar esses incêndios como razões principais (que, entretanto e por incidirem sobre quem não convinha, não agradaram a gregos nem a troianos; e vai daí, como habitualmente, para responsabilizar lá existe o mexilhão, o detentor dos prédios rurais), referindo-se às mortes, ... admite que mesmo com limpeza o resultado poderia ter sido o mesmo. (págs. 14), ou e mais à frente, ... 70% das vítimas estavam fora das suas casas que não arderam, ... e ... não há evidências que permitem associar as mortes ocorridas em espaço aberto ou dentro das viaturas ao não cumprimento das referidas medidas de gestão (limpeza). (págs 16). Gestão que, entretanto, nas casas ardidas e nos espaços circundantes, mais competiria, como se depreenderá, aos detentores delas do que aos da floresta; excepto quando aquelas, velhas e com estruturas de madeira, foram expostas a folhas voláteis igníficas que os propagaram aos telhados. Mas adiante!

Agora o que não se compreende, nem aceita, é que autoridades públicas responsáveis metam tudo no mesmo saco dos critérios das redes secundárias de gestão de combustíveis, misturem alhos com bugalhos e anunciem, avisem, fiscalizem e até apliquem coimas a tudo quanto é floresta ou espaços florestais, numa interpretação extensiva inadmissível, mormente em termos sancionatórios (cifra, artigo 29.º 3 da Constituição da República).

Espera-se, portanto, que se cumpra a lei, e só a lei e que se abandonem derivações fantasiosas, ainda que, porventura e nalguns casos, bem intencionadas.

Fundevila, 3 de Junho de 2020


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