Prosopagnosia, pandemia e um desejo

Existe um distúrbio cerebral que afeta a capacidade de quem dele sofre para reconhecer faces; tem o nome extraordinário de Prosopagnosia. São várias as suas causas e, no essencial, perturba a quem dela sofre,

a faculdade de memorizar rostos; o prosopagnósico vê as feições, mas não lembra a quem pertencem.
As padecentes têm consciência do distúrbio e, em regra, ultrapassam a dificuldade que ele causa procurando o reconhecimento através da voz, do cheiro, do cabelo, barba ou bigode, modo de andar e gesticular, pois que o não reconhecimento apenas atinge o rosto propriamente dito.


Soube da existência do mal e do seu nome através de uma das pequenas crónicas de Miguel Esteves Cardoso (que muitos conhecem por MEC), que referiu a facilidade com que confunde pessoas, as mais das vezes insuscetíveis de serem confundidas, e decorei o palavrão e o seu significado em virtude da minha propensão para que me aconteça o mesmo que ao referido cronista. Só que, desconhecendo ainda a existência do distúrbio e do seu nome, e não sendo positivamente o meu caso, como não é o do MEC, vou explicar o que se passa comigo e com o Miguel – a afinidade de maleita permite-me trata-lo assim – o que poderá servir de alívio para aquelas pessoas que, igualmente propendendo para idênticas confusões e sabendo do que aqui deixo contado, ficam a saber não serem caso raro nem, muito menos, patológico. Na verdade não sou prosopagnósico, como o não é o meu aludido colega cronista – e assim avanço na minha intimidade com ele sem que ele saiba disso, como nem sequer sabe de mim.

Ao meu problema chamei, quando me apercebi da frequência com que ocorre, síndrome da generalização.
O que se passa é que tenho uma espécie de hipersensibilidade à parecença entre pessoas por vezes bem diferentes, só porque em ambas ocorre um pequeno pormenor de semelhança, como por exemplo o formato dos olhos, uma pequena separação entre os dentes incisivos superiores, o corte de cabelo, o que me leva a generalizar essa semelhança, donde, para mim, essa pessoa passar a ser a outra.
Inversamente, uma mesma pessoa que tenha efetuado alteração de visual, ou de estilo de vestuário, ainda que moderada, ou até porque a encontro em local ou situação em que era enorme a improbabilidade de a encontrar, para mim deixa de ser quem é para ser somente alguém muito parecido. Assim acontece porque generalizo essa pequena alteração e a pessoa deixa de ser ela mas pessoa com ela parecida.
Aprendi a conviver com esta caraterística, da qual têm sido vítimas pessoas muito chegadas, amigos, amigas, conhecidos e, claro, até desconhecidos, a quem por vezes me dirijo de braços abertos para, face à reação da vítima, concluir que naquele momento eu fora atacado pela síndrome: o contrário me acontece por vezes com com amigos, amigas e conhecidos, até com familiares dos mais próximos, com quem me cruzo e olho como se fossem turistas japoneses a quem não devia mais atenção que a que lhes daria se fossem uzbeques, chineses ou cazaques.

Bastante mais poderia explicar sobre esta matéria, mas sei que neste ponto já os meus caros leitores terão imaginado os embaraços, vergonhas até, por que eu passaria, não fora o descaramento com que o convívio com a característica e, vá lá, alguma genética me habilitaram.
Uma das defesas que adquiri foi a de, quando me cruzo com alguém que me olha mais demoradamente que um segundo, logo cumprimento como a um indubitado conhecido; assim, se alguém ficar com problemas de consciência, não sou eu …
Acontece que a pandemia veio trazer novos contornos ao que relato: trata-se das máscaras, que apenas deixam à vista os olhos, as orelhas de quem use corte de cabelo que as não cubra, e o que se encontra a cota superior à daqueles órgãos: testa, cor, corte e penteado do cabelo dos que o têm, morfologia e rotundidade craniana voluntária ou involuntariamente expostas à atmosfera dos descabelados – isto quando os olhos se não encontrem dissimulados atrás de óculos escuros, ou o crânio submergido por chapéu, boné ou carapuça, ou ambas as coisas, o que agrava a situação.
Seja como for o certo é que, abstraindo dos adereços, oculares e cranianos, temos que os olhos adquiriram uma importância algo transcendente, pois só através deles e do olhar que brotam vamos podendo determinar se pertencem a conhecido ou desconhecido, qual a expressão da parte tapada do rosto, se quem nos cumprimenta é a nós que realmente está a cumprimentar, se os que cumprimentamos sorriem ou não quando nos correspondem, enfim, os olhos para além de espelho da alma passaram a ser também espelho do rosto. O que pode ser enganador, como, a título de exemplo, vou relatar, mas poderá propiciar ato de corajoso esclarecimento, como constará do relato, que é o seguinte:

Há dias fui ao LIDL comprar umas necessidades e quando, juntamente com as desnecessidades que também comprei, as pousava no tapete rolante que tudo levaria à caixa, um sujeito, que me antecedera no pagamento do que adquirira, olhou-me fugazmente por sobre a máscara contrapandémica, e, enquanto habilmente manobrava o carrinho com as compras, voltou a olhar-me por mais que um segundo, este deve ser meu conhecido logo pensei, pelo que lhe enderecei de imediato sonoro e franco cumprimento – como está, passou bem?
O senhor correspondeu-me com um clássico aceno de cabeça e desejo de boa tarde, deu dois passos em direção à saída, mas, estando eu já a pagar, largou o carrinho e, dirigindo-se a mim, diz como quem pergunta – acho que não o conheço! ao que retorqui – eu também acho!
O cavalheiro, pois sem dúvida de cavalheiro se tratava, puxa então a máscara deixando todo o rosto a descoberto, no que simultaneamente o imitei, dizendo-me ele, com expressão simpática, sorridente e algo maliciosa – então muito prazer em conhecer.

Face ao gesto, respondi, com idêntico, simpático e malicioso sorriso – o prazer foi todo meu.
Foram as únicas palavras que trocámos.
Ele repôs a máscara e prosseguiu para a saída, eu paguei, recebi o troco e segui pelo mesmo caminho.
Fiquei a pensar que gostaria bem de realmente conhecer o senhor em causa, para o que, como único meio que vislumbro para que tal desejo se concretize, se encontra ao dispor o meu endereço de email.


Guimarães, 06 de julho de 2021
António Mota-Prego
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