Sons da Cidade



Foi abordada, na última reunião camarária, matéria relativa ao aproveitamento que a região em que Guimarães se insere deve merecer com o lançamento de uma linha ferroviária de alta velocidade

partindo do Porto em direção ao Norte peninsular, mormente em direção a Vigo e que fará dali a ligação à rede de alta velocidade europeia.
É evidente que, mesmo receando que a mim de pouco ou nada venha a servir um tal progresso quando ele estiver pronto e em modo de uso, faço votos para que ele se concretize por forma a que sirva Guimarães e a região com proximidade, fácil e eficazmente.
Falei do receio a que aludi, pois que as minhas primeiras memórias do comboio não são as da sua materialidade, que então era a das negras e ameaçadoras locomotivas a vapor seguidas de uma meia dúzia de
carruagens incómodas e aparentemente frágeis, mas sim o seu imaterial silvo enquanto meio de previsão meteorológica.
Morando eu na rua de santo António, a estação situava-se, como ainda situa, para sul daquela rua. A partida das composições tinha um ritual curioso, que era o de uma inspeção rigorosa pelo chefe da estação, bem assente no cais, em marcial posição, para um e outro dos lados a ver se o comboio podia partir sem perigo para alguém que ainda estivesse a entrar numa das carruagens, a cabeça do maquinista a espreitar através da janela da locomotiva, seguindo-se a um leve gesto de cabeça do chefe um apito, imediatamente após um toque de corneta e, finalmente, um apito do comboio que, logo de seguida se punha em marcha.
Ora, quando em minha casa se ouvia o apito do comboio, significava isso, ensinaram-me, que por muito soalheiro que estivesse o dia aproximava-se um período de chuva, porque o normal era o vento sul trazer mau tempo, tanto pior quanto mais se ouvia o silvo, facto meteorológico este que não tem variado ao longo das décadas que desde então decorreram.
Esse foi um dos sons que, cá na terra, povoaram a minha meninice que agora me foram trazidos à memória e, como costuma acontecer com as cerejas, trouxe outros pendurados, como o lúgubre berrar dos bois e vacas que desciam a rua de Gil Vicente a caminho do matadouro, ali onde hoje existe o hotel Ibis.
Em minha casa ouviam-se perfeitamente esses berros pungentes dos animais cujo tom e extensão levavam a admitir que eles sabiam o destino que os esperava. Eu sentia bem isso pois que, frequentando assiduamente a quinta que os meus avós tinham em Brito, estava familiarizado com o som do berro dos bois que, quando produzido no curral ou nos trabalhos agrícolas, tinha uma entoação completamente diferente da que me chegava aos ouvidos quando provinda do gado que pela Gil Vicente caminhava em direção ao abate.
Aliás, a minha tia do costume, que os leitores já sabem qual fosse pelas inúmeras vezes que falei dela e lembro ser chamada por Mimi, quando eu me magoava e abria em altissonante choro a portentosa caixa sonora com que o Criador me dotou, quase invariavelmente dizia – oh menino cala lá essa goela, até parece que vais para o matadouro. E eu, se não calava, ao menos baixava a intensidade da carpição.
Sendo escasso o trânsito automóvel naqueles meados do século passado e reduzidíssimos os meios publicitários sonoros, os pregões fendiam o ténue rumor urbano, anunciando bens e serviços de todo o ano ou sazonais, destacando de entre os primeiros o da mulher ardina, apelando a “olhar” o Comércio do Porto e o Primeiro de Janeiro – “olhó Comércio, olhó Janeiro” – os diários mais lidos ao tempo na cidade, assim como os dois principais e mais bem sucedidos cauteleiros que, no passeio nascente do Toural, um no lado do Café Milenário e outro do lado oposto, misturavam o anúncio dos números das cautelas de que dispunham e de que, conforme o dia do anúncio, “sexta feira”, “amanhã” ou “hoje anda a roda”, com insultos disfarçados em meias palavras, o que faziam para atrair, como atraíam, a atenção dos passantes e lhes proporem a certeza da aquisição da sorte grande.

Os mais esperados anúncios sazonais eram os da lampreia e do sável na respetiva época, ciclóstomo aquele e peixe este que eram trazidos vivos em recipientes de lata tipo cântaros bojudos, um de cada lado da bicicleta em que os vendedores se faziam transportar.
Porém, também de sazão, era o anúncio de castanhas cozidas, transportadas em púcaro de barro, mas não o de qualquer dos vários vendedores desse fruto; a atenção era atraída pelo pregão, em voz de meio falsete, de um homem que, na época das castanhas, acumulava com a sua profissão permanente então chamada de “varredor da Câmara”, a de vendedor de castanhas que clamava “quentinhas e boas”, donde o ter ganho a alcunha de “Quentinhas”, alcunha que pouco teria a ver com o pregão, mas com o facto de a sua voz de falsete e modo meneado de andar, fosse empunhando o cântaro das castanhas fosse empurrando o carrinho do lixo, denunciador da homossexualidade que assumia e que, curiosamente, não fazia dele objeto de qualquer espécie de chacota mau grado a incompreensão e até intolerância, para não dizer homofobia, próprias da época.
Nas ruas da cidade frequentemente se ouvia o som da inconfundível melodia que os amoladores de tesouras e facas, que também eram reparadores de guarda-chuvas e louça partida, arrancavam das suas flautas de pan, como se ouvia, mais esporadicamente, a tralha melódica do tocador dos sete instrumentos.
Ouvia-se o som aflitivo da sirene dos bombeiros, chamando os membros da corporação, todos voluntários e dispersos pelos sete cantos da cidade, ao cumprimento do seu voto de serviço humanitário, sendo percetível, pela modulação do toque, sua intensidade e duração, da gravidade do sinistro e localização dele como sendo dentro ou fora do perímetro urbano.
Mas de todos, o som que efetivamente alegrava a cidade e que, não sendo frequente, se fazia ouvir várias vezes por ano, era o da prestigiada mas infelizmente há muito extinta banda de música da terra, conhecida por “Banda dos Guises”, assim chamada por ser Guise o apelido do seu fundador e serem membros da sua família vários dos instrumentistas da banda.
Existe entre nós uma magnífica banda filarmónica, a Banda da Sociedade Musical de Pevidém que, passados estes dias sombrios que a pandemia nos trouxe, poderá, caso existam condições para tal, com todos ou alguns dos seus elementos, fazer ocasionais, previstas ou imprevisíveis incursões nas ruas da cidade, o que, não duvido, ajudaria a sublimar, ao menos durante as suas exibições, o trauma da privação a que a Natureza nos sujeitou e, por outro lado, traria a Guimarães, cidade que, com os olhos e a ação postos no futuro, se orgulha tanto do seu passado, sejam o remoto ou o próximo, sons de antanho temperados com a modernidade que tão hábil e inspiradamente lhe tem sido trazidos por quem a dirige.

Guimarães, 11 de maio de 2021
António Mota-Prego
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